MÁGOA E PERDÃO

Um dos efeitos mais nocivos da mágoa é a atitude de indiferença. A indiferença é uma tentativa improdutiva da alma de tentar anular ou negar sentimentos, de isolar o afeto que, em sua concepção, foi traído. Essa iniciativa seja consciente ou não, só tem como resultado o ebulir dos maus pendores. A tentativa de ser indiferente nos leva a fixar nos pontos falhos, nas más recordações e na constante sensação de desconforto perante os ofensores.

É um esforço para impedir as vozes profundas da alma que solicitam a coragem de perdoar. Não conseguindo perdoar, redunda em males a nós mesmos. Temporariamente, em alguns casos, torna-se  até justificável a indiferença em relação ao ofensor, desde que não estejamos indiferentes a mutação  de sentimentos que saltitam em nosso coração em relação a ele. Indiferença temporária  ao ofensor  para dar tempo de minimizar os efeitos da ofensa. No entanto, se for  uma opção definitiva, uma escolha consciente e irreversível, estaremos caindo nas garras do orgulho e lutando contra a tendência natural da alma na busca de sua recuperação espiritual, cuja inclinação  e para a aproximação, a afetividade.
 
A mágoa cristaliza nossa visão no lado menos feliz das pessoas que nos ofenderam. Sob efeito da ofensa, somos capazes de esquecer, automaticamente, o afeto e os momentos de alegria que tivemos com nossos ofensores. Esse talvez seja seu pior efeito.

Perdão é somente esquecer a ofensa ? 
Perdão é emoção e não memória. Não se trata de apagar memória, mas de dar outro significado a ela.  

Como é perdoar de verdade ? 
A prova mais autentica do perdão de nosso íntimo é conseguir preservar o nosso foco mental nos aspectos positivos de quem nos ofendeu. Nos referimos às pessoas que tivemos oportunidade de conhecer e fruir amizade, carinho e momentos gratificantes que, sob o manto da ofensa, passam à condição de adversários. Esquecemos tudo de bom que nos uniu àquela pessoa e nos fixamos no deslize cometido.
 
Isso não seria pedir demais de nós ? Pensar na virtude de quem nos agrediu ou desrespeitou ?
Depende de conhecermos as razões que nos prendem a nossa mágoa e ao nosso ofensor. Quais os motivos profundos que nos atrelam à mágoa em relação a alguém. Quase sempre na raiz de nossas mágoas há interesses pessoais contrariados.
 
Por que nos sentiríamos ofendidos se não houvesse algo de pessoal ? A mágoa expressa um sentimento de injustiça. Jamais a sentimos dissociada da sensação de perda, lesão. Quando somos agredidos ou recebemos ameaças de agressão, entra em ação a emoção da raiva, para nos proteger. É o escudo contra o que pode nos machucar. É um sinal do coração para que o ofendido descubra pela dor algo importante para sua caminhada. E quando descobrir tomará o ofensor como grande instrutor de sua vida. A mágoa tem como elemento emocional básico a raiva que faz parte do sistema defensivo da alma. Caminhamos entre o sincero desejo de ser útil e as velhas ciladas da sombra do interesse pessoal. Na atualidade, ocorre um processo muito doloroso em nossa vida mental. Como buscamos a melhoria espiritual, estamos removendo as bases de um edifício de ilusões que nos serviram de alento e segurança nos milênios. O ruir desse edifício é ameaçador. Hoje estamos literalmente magoados com a Verdade, a Verdade sobre nós. Temos raiva de saber o que estamos descobrindo sobre nossa vida profunda. Estabelecemos um processo de autocobrança e autopunição face a essa realidade, tornando-nos facilmente melindráveis, magoáveis. A sofreguidão desse auto-encontro faz-nos irritáveis, frágeis psiquicamente para qualquer correção menos fraterna.

E ninguém, em são juízo, pode afiançar que sejamos almas abnegadas.
O interesse próprio ainda é o motor de nossas ações mesmo no terreno da espiritualização. Raramente adentramos o campo moral da virtude. Nosso processo de aperfeiçoamento ainda rasteja nos domínios da desilusão. É o preço que pagamos para vencer a ignorância que teima em manter-nos cegos acerca da nossa realidade moral. Todavia, nesse cenário, ninguém passará sem experimentar a dureza dos chamados. Muitos desses chamados virão de irmãos de caminhada e serão tomados como agressões geradoras do ressentimento. Conquanto não devamos incentivar o clima da franqueza mórbida que deveria ser substituída pela amabilidade, queiramos ou não, estaremos em ambientes que convidam as descobertas interiores, e muitas delas, serão realizadas sob a chancela da ofensa. 

O ofensor, seja ele intencional ou não, vai passar pela nossa vida e se vai; a mágoa, por sua vez, será transportada conosco até o instante que descobrirmos seu significado divino, o que ela tem para nos ensinar. No entanto, se não percebermos o quanto a mágoa nos faz mal, poderemos não só perder o fruto do que ela pode nos ensinar e, além disso, ao cultivá-la na vida emocional, adular um projeto de carcinoma fulminante.  

O Evangelho do Cristo ganhará uma nova roupagem com termos modernos, porém, nós, continuaremos como velhos religiosos apegados ao saber canônico dos livros, sem mudanças legítimas na conduta de cada dia por desconhecermos a elasticidade dos próprios ensinos de Jesus.

Não existem sentimentos na vida íntima que não tenham significado educativo para nossa caminhada.

Determinar o que se pode ou não sentir é uma sequela do religiosismo estéril, deseducativo. A carência de noções sobre a realidade interior, especialmente sobre os sentimentos, responde por inúmeras atitudes desconectadas da verdadeira intenção de melhorar.
A reforma íntima será a resultante da habilidade em lidar com o desconhecido universo da realidade profunda do inconsciente, no qual jazem mecanismos perfeitos de evolução que necessitamos esquadrinhar. Sem entender nossa vida afetiva.. rodaremos em círculos de dor com reações aprendidas tais como a culpa, a rivalidade silenciosa, a vergonha, o remorso e a própria raiva reprimida que se converte em estado melindroso, depois em mágoa e rancor, e, mais adiante, no ódio. 

Perdoar é compreender. Quem perdoa entendeu as razões da mágoa. Para perdoar não teremos que entender necessariamente a conduta do ofensor, mas a razão de nos sentirmos ofendidos.  Claro que estamos falando de mágoas e perdas nas  relações e não dos casos graves de maldade e traição nos quais  existem agressões severas, envolvendo inclusive bens materiais  e a vida corporal. Nesse estágio penetramos os domínios da  violência e as sequelas vão além da mágoa. 

A mágoa é um desgosto cujo objetivo é nos ensinar algo que  não estamos querendo ver de outro modo. Assim como a raiva que tem finalidades importantes no crescimento, a mágoa  tem lições profundas quando desejamos olhar para nós. Aliás,  a mágoa, quase sempre, é a raiva congelada, isto é, sentimos raiva em algum momento e não utilizamos esse sentimento com equilíbrio. Posteriormente, essa raiva cria uma mutação e  transforma em ressentimento. Todo interesse pessoal contrariado na vida cria uma revolta interior proporcional ao grau de evolução individual. Para  uns o desemprego significa chance de novas experiências, para  outros será uma expiação sem fim.

A vida a todo  instante nos contraria em favor de nosso crescimento. Somos  bloqueados em nossa liberdade a todo instante de alguma forma. A transição na humanidade pode ser reconhecida, basicamente, por uma constante oposição aos nossos interesses egoísticos. Filosofando, a vida nos magoa a todo instante!

Não querendo ver sua Verdade pessoal e  também por faltar habilidade para tratar feridas alheias, terminamos por abrir chagas além daquelas já conhecidas. A cultura religiosa dos séculos nos educou para entendermos perdão para com o ofensor, como uma forma de limpar a nódoa da mágoa para com ele, levando-nos a pensar da seguinte forma: já não chega a ofensa ainda terei que gostar de quem me  ofendeu!

O perdão, no entanto, antes de tudo, significa, reconhecer conosco mesmo o que estamos perdendo, em que estamos sendo contrariados e porque nos sentimos lesados. Essa auto-aferição é fundamental para nossa paz. No fundo, perdoar significa cuidar de nós mesmos e reconhecer a natureza da contrariedade  que experimentamos. Sem isso, continuaremos ignorantes sobre nossas perdas e quais são os interesses pessoais que a vida  nos solicita que façamos uma revisão.

A maior "magia" da vida é a libertação  de nossa própria consciência.

Como alcançá-la?
Que recursos usar contra nossos ímpetos destrutivos?
Que forças mentais  acionar contra os impulsos da vaidade e da inveja?
Como articular energias interiores contra a compulsão da maldade envernizada?
Como conter os movimentos mentais que fazem da língua um chicote?
Como alcançar o corpo mental pessoal  para transmutar as energias enfermiças sem serenidade mental?
Quantos pulsos energéticos direcionar para afrouxar nossa capacidade de afeto pelos diferentes?
Que frequência mental  usar para aplacar nossa compulsão para ser o maior?
Enfim como usar a força das Leis Naturais ou Divinas para renovar  a nós mesmos?
Os adversários têm modos inteligentes de multiplicar a mágoa. Nenhum deles é capaz de arranhar a força do perdão legítimo. Uma mente lúcida acerca de si mesmo, consciente de  seus próprios sentimentos, é o aparelho mais perfeito criado por  Deus para implantação do bem na Sua obra.
A questão é: como  desenvolver a lucidez em mentes adoecidas como nós?

A mágoa é larga porta mental aberta para a inquietude e a tristeza, que pode se degenerar em ansiedade e depressão.

Na  primeira o doente ofende-se com a fantasia que faz de supostos  rivais. Na segunda agasta-se com os fatos passados sem conseguir se livrar das lembranças enfermiças. O perdão é deixar ir. Soltar. Compreender.

Perdoar é voltar a estar junto do mesmo modo?
Quem compreende a lição da mágoa já tem o que lhe basta. Liberta-se do peso. Voltar a viver junto ou não será uma decisão para depois do perdão. Muitos tentam perdoar reatando laços e negando o ressentimento. O ideal será livrar-se do ressentimento e depois decidir essa questão, desde que haja em nós o  compromisso de jamais desistir de amar. Voltar a estar junto, quando a mágoa nos separa de alguém, é o ideal na proposta  do amor. Estejamos certo, porém, que jamais do mesmo modo. Até porque ofensor e ofendido tem algo entre eles também para reparar em favor do bem de ambos.

Assim como existe o ofensor não intencional, indiscutivelmente existe o magoado não intencional, aquele que se sentindo ferido por alguma razão, seja justa ou não, está ofendido, agredido.

A mágoa é  sempre uma lição para quem busca a sabedoria; dela o ofendido  descobrirá mais sobre si; dela o ofensor aprenderá mais sobre as  impressões que pode estar criando no íntimo dos que o cercam. Ambos, muito aprenderão sobre o amor. Conquanto seu caráter  doloroso, a mágoa pode se tornar uma excelente lição de vida. E  o perdão, conquanto difícil de aplicar, é a atitude de sabedoria  que mais evidencia o desejo intenso de amar.

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”
Jesus, Dotado de incomparável compreensão e lucidez acerca  das atitudes humanas, não Se sentiu ofendido. Perdão é compreensão. É muito desgastante pensar na mágoa. Algumas delas não entendemos tão rapidamente quanto  gostaríamos. Cansamos rápido de examinar suas razões, quando não entendemos sua existência em nosso íntimo. Na maioria  das vezes, nem mesmo ocupamo-nos de  pensar. Ela nos convém em muitas situações. Envolvidos por intenções mais nobres, esforcemo-nos em entender ofensas ocultas e soterradas. Radiografar suas nuances e descobrir suas mensagens sutis para nossa educação.

Maria Modesto Cravo.

Do livro :
Quem sabe pode muito. Quem ama pode mais.
Wanderley Soares de Oliveira
Espírito José Mario

Um comentário:

  1. Adorei... muito importante para mim,que vivo um momento dificil em que nao consigo perdoar...

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